Invasão de Campo: Adidas, Puma e os bastidores do esporte moderno

Invasão de Campo: Adidas, Puma e os bastidores do esporte moderno

Barbara Smit

A história da Adidas, da Puma e do início do marketing esportivo é uma epopeia de grandes empreendedores saídos dos escombros da guerra, de atletas fora de série e de políticos ambiciosos do mundo dos esportes. Uma trajetória que culmina com a passagem de um tempo da ingenuidade e do sacrifício para o deslumbramento e otimismo do capitalismo selvagem, em uma escalada sem muita ética e alavancada pelo consumismo de massa. Adidas e Puma são empresas sobreviventes, que souberam crescer antecipando e construindo mercados globalizados e massivos. Nesta época, pós-guerra e início da guerra fria, ética e politicamente correto eram palavras com traduções e significados diferentes do que vemos atualmente. Época de reconstrução, de orgulhos feridos, do nascimento de impérios multinacionais. Um retrato muito bem feito pela jornalista holandesa Barbara Smit.

A história dos irmãos sapateiros Adolf e Rudolf Dassler começa na Alemanha, no início da década de 1920. Antes da guerra, a empresa fundada pelos dois fazia muito sucesso vendendo sapatos exclusivos para a prática de esportes, algo bastante inovador à época. A ascensão da empresa de calçados esportivos construída na lavanderia da casa da senhora Dassler (a mãe) acompanha a chegada de Hitler ao poder. Passa pelo esforço de guerra, pela humilhação da derrota e seu renascimento, literalmente aproveitando restos de material coletado nas ruínas das cidades alemãs (de solas de botas militares a lonas de barracas) para fabricar sapatos. A guerra dividiu os Dassler. O ambiente de tensão, a pressão de viver no limite entre a vida e a morte, contaminou os irmãos, que passaram a desconfiar da própria sombra para sobreviver. Este clima inflamou uma rivalidade antiga entre eles e levou a ruptura da empresa. Adin (apelido de Adolf) fundou a Adidas e Rudolph, a Puma. Ambas empresas familiares, administradas por seus fundadores, esposas, filhos e genros e separadas somente por um rio, em uma cidade ao centro da Alemanha, na região da Baviera.

Adin era um assíduo praticante e fã de esportes, mais tarde, um sapateiro apaixonado por seu ofício, focado em resolver os problemas dos esportistas com seus calçados. Foco no produto. Para a estratégia, marketing, vendas e todo o resto estava a cargo da esposa Kathe Dassler, o filho mais velho Horst Dassler e as filhas. Kathe era quem organizava tudo. Desde o começo, cuidava das relações com clientes e fornecedores. Transformou a casa dos Dassler em um lugar aconchegante, onde os viajantes sempre tinham a disposição um prato de comida, um pedaço de bolo de ameixa com café e uma cama para descansar, enquanto faziam negócios. Este tratamento vip garantia a fidelidade com a marca Adidas e foi fundamental na formação da cultura da companhia.

Desde cedo, as relações pessoais foram um fator estratégico para o sucesso dos seus calçados esportivos. Os Dassler perceberam que a melhor propaganda para seu negócio era que esportistas destacados usassem seus produtos no momento das vitórias importantes. Esta visão de negócios diferenciou a empresa de seus concorrentes. A tal ponto que nas Olimpíadas de Melborne, em 1956, o jovem Horst Dassler, então com 20 anos teve a primeira ideia de impacto na sua produtiva vida empresarial. Distribuiu de forma gratuita dezenas de pares de tênis Adidas para os principais corredores de atletismo na competição, algo totalmente disruptivo e inovador para a realidade do momento, onde os atletas, todos amadores, dispendiam somas importantes de dinheiro para adquirir seus tênis de corrida. Garantiu desta forma uma visibilidade até então inédita para uma marca desportiva em uma competição deste porte. E começou a construir uma rede de relações que iria transformar os principais esportes mundiais.

Horst tinha uma personalidade bastante diferente da de seu pai e foi o principal responsável pela internacionalização, diversificação e alto crescimento da empresa da família. Para ele, “os negócios são relações”, e de fato construiu seu império baseado fortemente nesta premissa. Sua rede no mundo dos esportes era inigualável. Ajudou a eleger os presidentes da FIFA – Joao Havelange e Joseph Blater –  e do COI – Juan Carlos Samaranch. Com esta rede de influências, a Adidas se transformou em um fornecedor de roupas e acessórios esportivos para as principais delegações de esportes do mundo. Com ela, praticamente inventou o conceito de marketing desportivo, fazendo a intermediação dos direitos de imagem de eventos como a Copa do Mundo de Futebol e os Jogos Olímpicos para a exploração de marcas internacionais. Com o dinheiro entrando, criou os mecanismos de perpetuação de poder das pessoas fiéis a ele nestes organismos.

O único filho homem dos Dassler tinha bom feeling para selecionar pessoas com a ambição suficiente para entrar no esquema e trabalhar nos seus planos sem duvidar, capazes de fazerem o que fosse necessário para que as coisas “virassem” – o que muitas vezes significava mentir, subornar e trapacear. Horst era um exímio planejador, que sabia identificar oportunidades de negócio como ninguém. Com uma autoconfiança impressionante, que extrapolava para um ego também fora da curva, era capaz de construir equipes com grande capacidade de execução. Em pouco tempo, construiu um império às margens do negócio principal da Adidas.

Depois de mais de 20 anos dominando praticamente sozinha o mundo de calçados e roupas esportivas, a Adidas experimentou a soberbia dos líderes de mercado e menosprezou o crescimento de empresas como a Nike, até que fosse tarde demais. Perdeu mercados importantes para o concorrente americano e quase faliu.

A história da Adidas (que teve a Puma como coadjuvante), é um retrato bastante interessante do desenvolvimento de uma empresa familiar, que apesar de gigante, foi durante boa parte de sua trajetória, administrada pela família fundadora. Os conflitos emocionais, éticos e de visão de negócios entre o pai, a mãe, o filho, as irmãs e os genros escancara as dificuldades e complexidades de gestão para este tipo de empreendimento.

Mas, a história da empresa deixa outras lições importantes para aqueles que estudam e gostam de empreendedorismo. Listo alguns insights que resgatei do livro:

  • Os diferentes tipos de Empreendedor: o livro conta a trajetória de vários empreendedores. Mas, eu ressalto pelo menos dois tipos deles, ambos nascidos de familais empreendedoras: um esportista, apaixonado pelo seu oficio, ético, humilde e trabalhador, como Adolf Dassler o outro workaholic, ambicioso e egoísta, como o seu filho Horst Dassler. Um deles criou um negócio do zero e o outro transformou-o em uma multinacional, uma das primeiras empresas familiares alemãs que se reergueram depois da guerra.
  • Motivação empreendedora: as várias menções e trajetórias de empreendedores, levam também a reflexão da gênesis empreendedora, de porque as pessoas resolvem abrir um negócio: sobrevivência, ambição, herança, otimismo, pensamento positivo, formação, cultura. Interessante ver alguns dos componentes do Processo de Empreendedorismo, sugerido por Kerr e outros, interatuando nas histórias retratadas no livro.
  • Ética nos negócios: o perfil de Horst gera questionamentos em relação a ética nos negócios, como deve ser a conduta dos empreendedores. Uma vez mais vemos a capacidade de mudança que uma personalidade avassaladora como a dele pode causar. Seu foco absoluto no negócio (tinha quatro secretarias, fazia almoços rotativos, atendendo três clientes por vez, nunca estava presente em eventos familiares, por exemplo), ambição, impetuosidade, persistência, autoconfiança, planejamento e execução foram capazes de criar um império praticamente do nada. E como este ego enorme, se não for controlado, pode trazer impactos devastadores para aqueles que estão ao redor: família, empregados, sócios, parceiros comerciais e até para a sociedade. Muitos subornos, mentiras, estruturas financeiras, carreiras sendo montadas e destruídas com objetivos de dinheiro e poder. No fim, ele mesmo sentiu os efeitos das decisões que tomou. Morreu cedo, aos 51 anos, depois de uma metástase de um câncer que teve no olho. Estava tentando reagir ao crescimento de concorrentes como a Nike. Os antigos diriam que foi “olho gordo”, ou mesmo que “teve o olho maior do que a barriga”.
  • Inovação: O poder da inovação para criar e transformar mercado. Durante a trajetória da empresa, foram vários os exemplos de inovação de processos e de produto. Primeiro com o veho Dassler e seus calçados especiais para esportistas. Depois, as travas nas chuteiras. Finalmente, com Horst e seus tênis de graça para os atletas em Melbourne. O fim do amadorismo nos esportes e o patrocínio de atletas de ponta. As roupas esportivas entrando na moda. E finalmente a criação do conceito de marketing esportivo como forma de financiar os grandes eventos do esporte mundial. E sem contar as diversas inovações nos modelos de tênis ao longo dos anos.
  • Redes de Contato: a Adidas cresceu via sua rede de fornecedores, esportistas e dirigentes esportivos espalhados pelo mundo. As pessoas fazem as empresas e os negócios. Kathe Dassler entendeu isso muito cedo e talvez tenha sido o maior ensinamento que deixou para o filho e para a cultura da empresa. Esta abertura permitiu a Adidas espalhar sua rede pelo mundo, permitindo a expansão da empresa não só para Alemanha, mas para o mundo. Curiosamente, a mesma rede contribuiu para a saída da família da gestão da empresa e quase levou a Adidas à falência. A rede acabou crescendo tanto e de forma tão desordenada, que no final era um emaranhado de acordos e parcerias caóticas, difíceis de administrar e que se mostraram ineficientes no momento de reagir a concorrência.

Algumas passagens interessantes do livro:

“Ele era completamente obcecado. Ficava naquela arenga o dia todo, desde o café-da-manha, sobre as ideias que surgiam em sua cabeça. Ele não descansava nunca” sobre Adolf Dassler e sua relação com os calçados esportivos.

“De certa forma, Horst havia sido preparado para isto desde que começara a andar. Em ambos lados da família, os filhos de Adolf e Rudolf Dassler foram encaminhados para os negócios, fazendo trabalhos manuais durante as férias do colégio e da universidade ou ocupando posto de tempo integral, já adultos” sobre o início da carreira de Horst Dassler.

“Adolf continuava circulando com seu caderno de anotações e testando variações de modelos dos calcados em sua oficina, alheio aos negócios propriamente ditos. A obsessão que o fazia querer melhorar constantemente parece nunca ter diminuído. Durante cinco décadas, ele registrara quase 700 patentes em seu nome, desde as travas aparafusáveis até pequenas modificações em detalhes, que só o maior fanático do mundo poderia apreciar”

“Eu não entendo o meu filho. Ele tem tudo na vida. Porque tem que atormentar tanto a família”, Adolf lamentando a ambição de Horst na ampliação de negócios paralelos a Adidas.

“Os melhores gerentes não são aqueles que tem muitas ideias. São aqueles que conseguem escolher uma ou duas e executá-las impecavelmente” de Herbert Heiner, o CEO que reergueu a Adidas depois que ela saiu do controle da família Dassler.

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